Autores: Felippe Luiz Guimarães Fonseca1, Emília Alves Bento2, Rodrigo Andrade Vaz de Melo3 e Sergio S. Leal de Meirelles4
- Médico Residente do Hospital Federal dos Servidores do Estado
- Chefe de Clínica do Hospital Federal dos Servidores do Estado
- Preceptor de Residência do Hospital Federal dos Servidores do Estado
- Chefe do Serviço de Cirurgia Vascular do Hospital Federal dos Servidores do Estado
Introdução:
A abordagem dos aneurismas toracoabdominais é sabidamente um desafio para todo cirurgião vascular, sobretudo os aneurismas do tipo III e IV de Crawford, sendo esses os que mais comumente se apresentam nas rotinas dos grandes serviços. As aneurismectomias ainda figuram como importantes ferramentas para seu tratamento, contudo exigem uma grande reserva funcional, “custo” esse que não pode ser aplicado a pacientes com limitações clínicas mais acentuadas. Nesse cenário, despontam as inovações endovasculares para correção de grandes aneurismas, permitindo uma menor agressão perioperatória com resultado ainda satisfatório. Ainda sim, nem todos possuem anatomia favorável para o método. O que fazer quando estamos diante de um paciente com contraindicação formal a ambos? Destacam-se nessas situações as cirurgias híbridas, procedimentos que procuram minimizar as complicações de ambos os métodos
para que o tratamento ideal seja alcançado. É nesse sentido que apresentamos um relato de caso de paciente jovem com aneurisma toracoabdominal tipo III, diagnóstico de arterite de Takayasu, apresentado limitações clínicas
importantes, bem como anatomia desfavorável para abordagem endovascular. Optou-se pela abordagem híbrida, com “debranch” de artérias viscerais e correção endovascular do aneurisma em 2 tempos, alcançado sucesso terapêutico precoce.
Relato do Caso:
Para publicação do relato de caso a seguir foi obtido consentimento com familiares.
J.L., 29 anos, negro, casado, comerciante, há 12 anos com diagnóstico de arterite de Takayasu (tratamento abandonado há pelo menos 10 anos), HAS, apresentou-se em um hospital universitário do Rio de Janeiro com quadro de dispneia em repouso, tosse seca e edema de membros inferiores. Constatou-se na internação cardiomegalia e
insuficiência cardíaca congestiva. Após compensação clínica, foram realizados pulsos metilprednisolona e ciclofosfamida para controle da arterite. Durante investigação da disfunção cardíaca, foi revelada a presença de volumoso aneurisma de aorta toracoabdominal com atrofia do parênquima renal esquerdo (compatível sua insuficiência renal crônica AKIN II, mais detalhes sobre o aneurisma serão discutidos adiante). Após completa compensação e estratificação clínica, o paciente foi encaminhado ao Serviço de Cirurgia Vascular do Hospital Federal Servidores do
Estado.
Na admissão o paciente estava com a função cardíaca otimizada (ICC NYHA II, capacidade funcional superior a 4 METs), em uso regular de AAS, Digoxina, Hidralazina, Furosemida, Caverdilol e Dinitrato de Isossorbida. O controle da arterite era obtido com prednisona, 15 mg diariamente. Não havia relato de cirurgias anteriores, alergias ou histórico sugestivo de discrasias sanguíneas.
Ao exame era possível constatar a ausência de pulso axilar, braquial, radial ou ulnar bilateralmente. Carótidas apresentavam pulsatilidade normal, sem frêmitos ou carotidínea. Não havia alterações no exame vascular dos membros inferiores. O exame do abdome revelava uma grande massa pulsátil em topografia de aorta, sem limite superior palpável. No exame do precórdio, constava-se a ausculta de um ritmo cardíaco regular em 3 tempos, bulhas normofonéticas, galope por B3 e sopro diastólico 5+/6+ melhor audível em foco aórtico. O restante do exame físico não demonstrou nenhum achado digno de nota.
Os exames laboratoriais não demonstravam novas alterações (tabela 1), incluindo proteína C reativa e velocidade de Hemossedimentação dentro dos parâmetros da normalidade. Destacavam-se apenas a alteração da função renal, compatível com IRC Akin II.
Laboratório:
Hemoglobina: 12,5 g/dl
Hematócrito: 37,9 %
Leucócitos: 6100 103/µl
Plaquetas: 163.000 103/µl
Glicose: 83 mg/dl
Ureia: 30 mg/dl
Creatinina: 1,8 mg/dl
TAP: 11,9 seg
INR: 1,09
VHS: 8 mm
PCR: 0,8 mg/dl
Tabela 1 – Exames laboratoriais.
Em uma avaliação rápida com ECG e radiografia de tórax, foram constatados cardiomegalia, ritmo sinusal, bloqueio de ramo esquerdo e sobrecarga ventricular esquerda. O ecocardiograma transtorácico demonstrou hipertrofia ventricular esquerda excêntrica. Aumento das cavidades esquerdas com disfunção sistólica grave (FE: 33%), por hipocinesia difusa mais acentuada em região ínfero-apical, com movimentação paradoxal do septo IV. Função de VD preservada. Refluxo mitral moderado a grave, refluxo aórtico moderado a grave, derrame pericárdico mínimo. O estudo coronariano ficou a cargo de uma angiotomografia, que demonstrou ausência de ateroesclerose coronariana detectável ou lesões coronarianas significativas. Presença de placa calcificada na raiz aórtica determinando estenose leve (<50%) no óstio de CD, contudo paciente apresenta dominância de CE.
Após estratificação clínica satisfatória, seguiu-se a análise anatômica do aneurisma baseada em angiotomografia multislice com 64 canais. No exame é possível identificar um aneurisma toracoabdominal com as seguintes características:
- – Dilatação aneurismática da aorta iniciando-se na altura da 7a vértebra torácica, estendendo-se até bifurcação das artérias ilíacas sem o acometimento da mesma (Crawford III1). O aneurisma apresentava 11 cm em seu ponto de maior dilatação, região essa que tocava a parede abdominal. Havia trombo mural circunferencial excêntrico em toda extensão do aneurisma (Figura 1).
- – Ramos viscerais: Tronco celíaco com estenose superior a 80% próxima a sua origem. Artéria mesentérica superior ocluída na origem. Artéria mesentérica inferior calibrosa, sendo responsável pela formação das arcadas marginais e arco de Riolan. Artéria renal esquerda ocluída seguindo para rim de aspecto escleroatrófico. Artéria renal direita com pequena estenose ostial seguindo para rim de aspecto vicariante (Figura 2).
- – Aorta torácica: No arco aórtico encontramos tronco braquiocefálico e carótida esquerda sem alterações. A artéria subclávia direita e esquerda apresentam obstruções distais com diâmetros de 0,6 cm cada. O colo entre a artéria subclávia esquerda e o início do aneurisma possuía 15 cm, com diâmetro variando entre 25 e 27 mm.
Ainda que representadas em cortes transversais para maior didática, todas as medidas foram confirmadas através de reconstrução com recurso de “linha de centro”.
Levando-se em consideração a situação clínica limítrofe, anatomia inadequada para correção endovascular e, sobretudo, vontade do paciente de intervir no aneurisma, optou-se pela cirurgia híbrida, a qual foi realizada em dois tempos. Em ambos os procedimentos, foi efetuado preparo com hidratação e n-acetilcisteína para preservação da função renal, bem como hidrocortisona perioperatória devido ao uso regular de prednisona.
No primeiro tempo, foi realizada uma laparotomia com acesso transperitoneal para efetivação do “debranch” visceral. Da artéria ilíaca externa direita foi confeccionada uma ponte com PTFE anelado para artéria renal direita de forma direta. A ilíaca externa esquerda serviu como origem para outra ponte com PTFE anelado que comtemplava a artéria mesentérica inferior e seguia para o tronco celíaco, com trajeto retocólico e pré-pancreático (Figura 5). Após a
intervenção, não houve qualquer tipo de intercorrência pós-operatória, estando pronto o paciente para o 2o tempo do
procedimento uma semana após.
Na abordagem endovascular optou-se pela dissecção da artéria femoral comum direita com punção simples da artéria femoral contralateral. O aneurisma foi corrigido com implante de três endopróteses torácicas tipo Valiant® (28 x 28 x 150 mm / 32 x 32 x 200 mm / 34 x 30 x 150 mm), sendo a bifurcação comtemplada com endoprótese bifurcada tipo
Power link® + extensão única (25 x 16 x 30 mm / 34 x 34 x 100 mm). A aortografia de controle demonstrou boa adequação das próteses sem nenhum tipo de vazamento (Figura 6), o que viria a ser confirmado por controle tomográfico pós-operatório.
Cabe ressaltar que devido ao risco de isquemia medular houve monitorização contínua da pressão liquórica no per e pós-operatório (72h). Houve agudização da disfunção renal com necessidade de hemodiálise precoce. Devido à dificuldade no controle pressórico, paciente permaneceu 1 semana em unidade coronariana. Seguiu-se, então, melhora progressiva da função cardíaca e renal com alta hospitalar 15 dias após a realização do 2o procedimento.
Cerca de 40 dias após o procedimento, reinterna no hospital universitário de origem por descompensação da função cardíaca devido à manutenção irregular do tratamento. Evoluiu com síndrome infecciosa associada à diarreia, provável colite isquêmica. Durante tratamento com antibióticos, apresentou edema em MID e piora progressiva da função cardíaca, sendo diagnosticado tromboembolismo pulmonar, que culminou com óbito do paciente.
Discussão:
Tendo em vista um caso tão rico em comorbidades, é importante questionar se apenas um diagnóstico é capaz de comtemplar todas as manifestações apresentadas. Nesse sentido, a arterite de Takayasu, bem como maior parte das vasculites, deve ser respeitada devido a seu acometimento sistêmico que, não raramente, se destaca pela sua gravidade, já que as manifestações surgem em grande parte nos estágios finais da reação inflamatória vascular.
Podemos, assim, contemplar os diagnósticos dentro do contexto da vasculite: a HAS secundária é uma manifestação frequentemente associada, podendo ocorrer em até 50%2,3 de todos os casos. Destaca-se como causa frequente da mesma a estenose das artérias renais (até 50% dos casos4,5), posteriormente confirmada no caso por método gráfico. A insuficiência cardíaca congestiva não possui associação tão contundente, contudo pode se tornar esperada em quadro de longa data de cardiopatia hipertensiva não tratada. A insuficiência aórtica, também presente no caso, é comum nos casos de arterite acompanhada da dilatação da aorta6. Ainda que não tenha sido detectado acometimento coronariano, parte dos pacientes pode apresentar miocardiopatia direta pela vasculite, embora essa seja uma apresentação rara7.
No tocante a estenose das artérias renais, podemos ainda incluir a disfunção renal pela progressão da doença não controlada, fato este evidenciado pela estenose de artéria renal direita e presença de um rim esquerdo escleroatrófico. Resta apenas, então, relacionar a arterite ao aneurisma toracoabdominal. A associação de ambos é incomum, sendo mais prevalente na arterite de takayasu aneurismas fibrosos pós-estenóticos8. Contudo, quando associamos a gravidade da cardiopatia hipertensiva não tratada ao longo de uma década a uma aorta fragilizada pela vasculite, podemos facilmente inferir uma relação de nexo causal.
Em relação às opções terapêuticas, encontravam-se apenas poucas propostas factíveis para o paciente. Ainda que a aneurismectomia direta seja considerada por muitos o “padrão-ouro” para o tratamento, as condições clínicas do paciente tornava o risco do procedimento proibitivo. Naturalmente, teríamos as opções endovasculares como segunda opção, contudo as restrições anatômicas do caso (obstrução de subclávias, vascularização abdominal predominantemente pela a.mesentérica inferior, estenose de a.renal e tronco celíaco) tornavam as técnicas endovasculares clássicas praticamente inexequíveis. Destacavam-se, assim, como soluções possíveis para o caso a técnica híbrida e o implante de prótese customizada, sendo a última indisponível naquele momento.
A técnica híbrida, quando empregada por serviço especializado, possui uma taxa de sucesso primário próxima a 96,3%9, sendo mortalidade pós-operatória esperada para até 12,6% dos casos. A complicação precoce mais frequente é a disfunção renal, com incidência de cerca de 10%. A isquemia medular pode ser encontrada em até 6,5% dos pacientes submetidos ao procedimento, sendo metade das mesmas reversíveis se o tratamento precoce for obtido.
As complicações tardias ficam a cargo das oclusões dos ramos do “by-pass” e do endoleak. Dentre as oclusões, a oclusão da artéria renal é mais comum, mas normalmente é bem tolerada pelo paciente que tenha ambos os rins. Já a oclusão do ramo mesentérico é a complicação mais grave, chegando a praticamente 100% de mortalidade. O endoleak apresenta-se em cerca de 18% dos controles pós-operatórios. Desses, apenas 23,5% possuem indicação de alguma intervenção9.
Uma questão que sempre se impõe ao tratamento híbrido é a realização de um procedimento único ou em dois tempos. A grande vantagem do primeiro seria evitar a ruptura do aneurisma entre os tempos do procedimento10,11, às custas de uma maior morbimortalidade pré-operatória. Metanálises recentes sobre o assunto não chegarem à conclusão definitiva sobre o debate9, contudo grande parte dos resultados aponta para maior segurança do procedimento realizado em dois tempos, com risco ruptura mínimo entre as intervenções.
Conclusão:
O método híbrido possui taxas de mortalidade e complicações significativamente baixas quando comparadas às aneurismectomias e correções endovasculares clássicas dos aneurismas toracoabdominais. É uma técnica factível e, mesmo não fazendo parte da rotina de grande parte dos cirurgiões vasculares, deve se apresentar sempre como opção para casos marcados tanto pela dificuldade anatômica quanto aqueles que apresentam baixa reserva funcional.
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