*Ana V. Salomon1, Ana Carolina Diaz1, Paulo Henrique Nahar1, Nerio Ferraz1, Raphaela Gazzoli1, Gabriel Ahouagi1, Leandro Tavares2, Felippe Luiz Fonseca2, Rivaldo Tavares2, Ricardo Ribas3.
1Pós-Graduação de Transplante Renal – PUC/RJ
2Cirurgião do Serviço de Transplante Renal do Hospital São Francisco de Assis (RJ) e da Pós-Graduação de Transplante Renal – PUC/RJ
3Cirurgião Chefe do Serviço de Transplante Renal do Hospital São Francisco de Assis (RJ) e da Pós-Graduação de Transplante Renal – PUC/RJ
RESUMO
Objetivo: Uma realidade brasileira é a elevada taxa de uso de cateteres de curta e longa permanência para hemodiálise. O seu uso indiscriminado gera fibrose, estenoses e oclusões em veias ilíacas externas, local de preferência para implante venoso no transplante renal. O objetivo deste estudo é comparar os resultados, a
curto prazo, de implantes realizados em sítio padrão (veia ilíaca externa) com implantes realizados em veia ilíaca comum e veia cava inferior, utilizados como sítios alternativos.
Casuística e Métodos: Análise retrospectiva dos resultados, a curto prazo, de 209 transplantes renais realizados no Serviço de Transplante Renal do Hospital São Francisco de Assis no período de março de 2020 a fevereiro de 2021.
Resultados: Dentre os 209 transplantes renais de doador falecido realizados nesse período, 180 (86,2%) foram implantados em veia ilíaca externa e 29 (13,8%) em veia ilíaca comum e veia cava inferior.
Analisando o grupo de implante venoso em sítio alternativo, não houve fístula urinária, 32% dos pacientes apresentaram função renal retardada do enxerto (DGF – Delayed Graft Function), foram necessárias cinco re-intervenções cirúrgicas (quatro sangramentos e uma linfocele), além de 14% de mortalidade precoce.
Conclusão: O transplante renal em veia ilíaca comum ou veia cava inferior é uma alternativa eficaz, porém associado à maior morbimortalidade quando comparada à técnica cirúrgica convencional.
INTRODUÇÃO
O transplante renal é considerado o melhor tratamento para doença renal crônica em estágio final. O risco de morte em pacientes submetidos a esse tratamento é menos da metade daqueles que realizam hemodiálise crônica1. Segundo o Censo Brasileiro de Diálise, houve um aumento na prevalência da doença renal crônica no Brasil de 58% entre os anos de 2009 e 2018. Associado a isso, observa-se maior utilização de cateteres venosos de curta e longa permanência para hemodiálise, em detrimento da confecção das fistulas arteriovenosas2 (Gráfico 1).
O uso indiscriminado de cateteres, além de estar associado ao aumento da morbimortalidade2 é a principal causa de estenose e oclusão em veias ilíacas externas, que é o sítio preferencial para implante venoso no transplante renal. Em consequência dessa realidade, torna-se frequente o implante do enxerto renal em veias ilíacas comuns e veia cava inferior, o que pode levar a uma maior taxa de complicações cirúrgicas. O objetivo deste estudo é comparar os resultados, a curto prazo, de implantes realizados em sítio padrão (veia ilíaca externa) com implantes realizados em sítios alternativos como veia ilíaca comum e veia cava inferior.
MÉTODOS
Foi realizada uma análise retrospectiva dos resultados, a curto prazo, de 209 transplantes renais de doador falecido realizados no Serviço de Transplante Renal do Hospital São Francisco de Assis (RJ), no período de março de 2020 a fevereiro de 2021.
Os seguintes desfechos foram analisados: função retardada do enxerto (DGF – Delayed Graft Function), fistula urinária, infecção de ferida operatória, hematoma retroperitoneal com necessidade de reabordagem cirúrgica, linfocele e mortalidade precoce. A função retardada do enxerto é definida como necessidade de diálise na primeira semana após o transplante renal.
RESULTADOS
Dos 209 transplantes renais de doador falecido realizados nesse período, 29 (13,8%) foram implantados em sítios alternativos. Destes, 19 (65%) implantes em veia cava inferior e 10 (35%) em veia ilíaca comum.
No grupo dos 180 transplantes renais realizados em veia ilíaca externa, foi observado que 51 (28%) pacientes evoluíram com função retardada do enxerto, 12 (7%) fístulas urinárias e 12 (7%) transplantectomias. Dentre essas, três por fístula urinária sem possibilidade de reconstrução do trato urinário, uma por trombose venosa do enxerto renal, três por hematoma infectado, dois por hematoma
retroperitoneal e três por rejeição aguda do enxerto. Ocorreram cinco (3%) infecções superficiais de ferida operatória, uma linfocele (0,5%), dez (6%) hematomas retroperitoneais com necessidade de reabordagem cirúrgica, sendo que um (0,5%) desses pacientes evoluiu para óbito devido à instabilidade hemodinâmica (Gráfico 2).
No grupo dos 29 implantes em sítios alternativos, dez (34%) evoluíram com função retardada do enxerto, quatro (14%) hematomas retroperitoneais com necessidade de reabordagem cirúrgica, uma (3%) transplantectomia por hematoma infectado, duas (7%) infecções superficiais de ferida operatória, uma (3%) linfocele e quatro (14%) óbitos (um por sepse devido a hematoma infectado; uma paciente portadora de Lúpus Eritematoso Sistêmico, que evoluiu para óbito no pós-operatório imediato devido a tromboembolismo pulmonar maciço; e dois por choque hemorrágico).
DISCUSSÃO
A técnica cirúrgica padrão para o transplante renal utiliza os vasos ilíacos externos para as anastomoses vasculares. Considerando a impossibilidade do uso desses vasos devido à estenose ou oclusão, as alternativas mais frequentes são o implante venoso em veia ilíaca comum ou veia cava inferior.
Estenose ou oclusão dos vasos centrais é, na grande maioria das vezes, resultante do uso indiscriminado de cateteres de curta e longa permanência nas veias femorais, realidade comum em nosso meio. Estima-se que em 2018, o número de pacientes em uso de cateter de longa permanência mais do que dobrou em relação a 2013, enquanto que o de curta permanência manteve-se estável em 9,2%, totalizando uma taxa de 23,6% de utilização de cateteres para
hemodiálise crônica2. A alta taxa de implante do enxerto renal em sítios alternativos encontrada em nosso estudo
reflete essa realidade. A dificuldade do acesso cirúrgico a esses vasos resulta em um maior tempo cirúrgico, isquemia prolongada do enxerto e maior risco de complicações devido à extensa dissecção retroperitoneal.
O sangramento e hematoma pós-operatório é uma complicação frequente após o transplante renal, variando de 0,2% a 25% na literatura, sendo a maioria destes de pequena monta e tratada conservadoramente3. Apesar das taxas de sangramento neste estudo serem equiparáveis à literatura, foi observado que esses foram mais comumente
relacionados a transplantes em cava e ilíaca comum, quando comparados ao implante em veia ilíaca externa (14% vs 6%), possivelmente devido ao maior porte cirúrgico e maior manipulação do retroperitônio.
A linfocele é uma complicação associada à lesão de vasos linfáticos durante o acesso cirúrgico e dissecção vascular, variando de 1-26% em análises prévias4. Para linfoceles volumosas e sintomáticas, a terapia intervencionista com marsupialização peritoneal é a terapia de escolha4. Na casuística aqui apresentada, foi necessária a abordagem cirúrgica de um caso de linfocele no grupo de transplante renal padrão e um caso no grupo de transplante em sítio alternativo (0,5% vs 3%), resultados comparáveis à literatura.
Não foi observada maior taxa de fístula urinária em transplantes em veia cava inferior e ilíaca comum quando
comparados ao transplante padrão. Mesmo com maior dissecção cirúrgica e implante em topografia mais cranial, é possível a realização de ureteroneocistostomia devido à longa extensão ureteral do enxerto renal.
A taxa de infecção de ferida operatória foi maior em pacientes com implante em veia cava e ilíaca comum, do que quando comparada ao implante padrão (7% vs 3%). Em relatos prévios, cerca de 4% evoluem com essa complicação5. Dentre os fatores de risco mais associados, estão idade maior que 60 anos, alto índice de massa corporal, anemia, hipoalbuminemia, tempos cirúrgicos prolongados. A maioria das infecções de feridas é superficial, tratada com antibioticoterapia e cuidados locais5.
A função retardada do enxerto (DGF) é a complicação precoce mais comum pós-transplante renal. Tradicionalmente, é definida como a necessidade de hemodiálise na primeira semana após o transplante. Apresenta uma taxa estimada de 20-25% em enxerto de doadores falecidos, podendo chegar a 40% quando consideramos critérios expandidos para doação6. Os fatores de risco mais associados são isquemia prolongada do enxerto, IMC elevado do receptor,
doadores com idade elevada e critérios estendidos6. No presente estudo, observou-se 28% de função retardada do enxerto em transplantes padrão contra 34% em transplantes em cava e ilíaca comum. Estudos prévios indicam que pacientes com DGF têm maior risco de rejeição aguda do enxerto e aumento de 53% na mortalidade quando
comparados a pacientes com boa função renal na primeira semana após a cirurgia6.
Destaca-se a elevada taxa de óbito no grupo de implante em sítios alternativos quando comparados ao implante em veia ilíaca externa (14% vs 0,5%). Esse achado pode estar associado à maior ocorrência das complicações
previamente descritas, principalmente pelo maior risco de hemorragia, infecção de ferida operatória e função retardada do enxerto, encontrados nesse grupo de pacientes.
CONCLUSÃO
O transplante renal em veia ilíaca comum ou veia cava inferior é uma alternativa eficaz e frequentemente utilizada no atual cenário brasileiro. Porém, pelos resultados obtidos neste estudo, foi associado à maior morbimortalidade quando comparada à técnica cirúrgica convencional.
Como sugerido nas principais diretrizes internacionais7, para uma melhor qualidade e sobrevida dos pacientes com doença renal em estágio final, o cuidado se inicia desde o planejamento da confecção de fístulas arteriovenosas no período pré-dialítico, evitando o uso abusivo de cateteres para hemodiálise, até a realização do melhor tratamento vigente nesse estágio da doença, o transplante renal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- Wolfe RA, Ashby VB, Milford EL, et al. Comparison of mortality in all patients on dialysis, patients on dialysis awaiting transplantation, and recipients of a first cadaveric transplant. N Engl J Med. 1999;341(23):1725-1730. doi:10.1056/NEJM199912023412303
- Neves PDMM, Sesso RCC, Thomé FS, Lugon JR, Nasicmento MM. Brazilian Dialysis Census: analysis of data from the 2009-2018 decade. J Bras Nefrol. 2020;42(2):191-200. doi:10.1590/2175-8239-JBN-2019-0234
- Dimitroulis D, Bokos J, Zavos G, et al. Vascular complications in renal transplantation: a single-center experience in 1367 renal transplantations and review of the literature. Transplant Proc. 2009;41(5):1609-1614. doi:10.1016/j.transproceed.2009.02.077
- Atray NK, Moore F, Zaman F, et al. Post transplant lymphocele: a single centre experience. Clin Transplant. 2004;18 Suppl 12:46-49. doi:10.1111/j.1399-0012.2004.00217.x
- Røine E, Bjørk IT, Oyen O. Targeting risk factors for impaired wound healing and wound complications after kidney transplantation. Transplant Proc. 2010;42(7):2542-2546. doi:10.1016/j.transproceed.2010.05.162
- Irish WD, Ilsley JN, Schnitzler MA, Feng S, Brennan DC. A risk prediction model for delayed graft function in the current era of deceased donor renal transplantation. Am J Transplant. 2010;10(10):2279-2286. doi:10.1111/j.1600- 6143.2010.03179.x
Lok CE, Huber TS, Lee T, et al. KDOQI Clinical Practice Guideline for Vascular Access: 2019 Update [published correction appears in Am J Kidney Dis. 2021 Apr;77(4):551]. Am J Kidney Dis. 2020;75(4 Suppl 2):S1-S164. doi:10.1053/j.ajkd.2019